LIVRES, LEVES E LOUCAS. KKKKKKKKK

Garanto que você, que lê essa reportagem, já ouviu alguma frase como "senta como uma menina", "você precisa se arrumar mais", "já está pronta para casar", "precisa saber cozinhar e cuidar da casa", "você é a principal responsável pelo cuidado com os filhos", "precisa ser mais feminina", entre tantas outras. A mulher, de acordo com o padrão imposto pelo patriarcado, precisa ter cabelo comprido, fazer as unhas, estar com a depilação em dia e saber, como ninguém, a cuidar - dos filhos, do marido, da casa. São caixinhas que limitam e rotulam quem a mulher deve ser. Aos poucos, em um longo processo que está atrelado principalmente a lutas coletivas, como o movimento feminista, isso tem mudado.

A cientista social e antropóloga Renata Piecha explica que sempre existiram mulheres que, de alguma forma, revolucionaram o modo de ser, porém nem sempre elas foram reconhecidas.

- Atualmente, nós temos mais oportunidades de emancipação, como por meio das universidades, além de outras políticas públicas, mas ainda existe muito essa estigmatização. O papel da mulher na sociedade ainda é muito atrelado ao processo reprodutivo, e quando elas optam por não o seguirem acabam por quebrar paradigmas - salienta.

A historiadora, professora e escritora Nikelen Witter explica os maiores momentos da luta feminista antecederam guerras (a Primeira Guerra Mundial, especialmente). Na década de 1960 houve um novo salto na busca por essas liberdades. Os primeiros 20 anos do século XXI também foram marcados por uma iniciativa mais generalizada e global.

- Estamos indo além, no sentido de que queremos uma mudança social como um todo e não apenas para algumas demandas e alguns grupos restritos e específicos de mulheres. A gente quer para todas - salienta.

Mesmo quebrando moldes, os rótulos não nos deixam. Quem opta por viver sozinha, é "solteirona", quem não quer ter filhos, "jamais será completa", e quem prioriza a carreira, é "egoísta". As opções nos tornam "menos mulheres".

Renata Piecha vê como uma violência simbólica esse papel de que a casa é responsabilidade da mulher. Segundo ela, para que se chegue a uma igualdade no futuro, é preciso educação e socialização das próximas gerações, afinal, é urgente que homens e mulheres tenham papeis sociais iguais.

- Eu acredito que um dos motivos que fazem com que as mulheres abdiquem de uma família com filhos é a sobrecarga, pela concorrência com os homens, pois elas precisam trabalhar oito ou 10 horas fora e ainda chegar em casa e lidar com a sobrecarga das tarefas domésticas e dos filhos. Nós mulheres precisamos penar três vezes mais do que os homens em uma carreira.

A questão da independência, segundo Nikelen, nos setores médios da sociedade, estiveram mais marcados pela questão do controle social em cima das mulheres. De acordo com ela, as mulheres de baixa renda nunca deixaram de trabalhar e ocupar espaços públicos. Elas faziam o que fosse necessário para sobreviver e manter seus filhos.

- Hoje, justamente por termos um movimento como o feminista com muitas mulheres que lutam há 200 anos, as liberdades são mais aceitas. Essas mulheres "fora da curva" não são mais vistas como "anomalias sociais", mas passam a poder lidar com suas vidas da forma como querem. Podem dizer que não querem filhos e casamento, e não ser uma aberração.

A cientista social e antropóloga acredita na teoria da escritora feminista negra Joice Berth, de que o empoderamento é uma emancipação da mulher de forma coletiva, e não só individual.

- É discutir o que entendemos como poder e sobre as relações desiguais da sociedade. Reconstruir nossos comportamentos. A internet, apesar de concentrar muitas fake news, é uma ferramenta para isso. Hoje, existem muitas mulheres discutindo a maternidade, por exemplo, e estimulando outras mulheres a pensarem e desromantizarem o assunto.

LIBERDADE PARA O CORPO

É numa barra de pole dance que Aline Jabur, 30 anos, trabalha a autoestima e aceitação de dezenas de mulheres em Santa Maria. Em 2015, em Itaqui, cidade natal, fez a primeira aula da modalidade e pensou "é isso que quero fazer da vida". A partir daí, largou o trabalho formal como relações públicas, do qual estava insatisfeita, e investiu em cursos de pole. Foi com uma barra vertical na sala de casa que começou a dar aulas para amigas e conhecidas. O negócio cresceu, e em 2020 alugou uma sala comercial, reformou o espaço, instalou três barras de pole dance e, desde então, está com os horários lotados e uma lista de espera para novas alunas. A Big Queen, nome da empresa, revolucionou a vida de Aline e revolucionou a vida de outras mulheres, que buscam no pole dance um olhar mais poderoso sobre si mesmas.

- O pole dance é libertador porque, aos poucos, as mulheres vão se soltando e percebendo que são capazes de fazer coisas que jamais poderiam imaginar. Junto com esse processo de aprendizagem da modalidade, vem também a autoconfiança. Começamos a nos aceitar como somos, a olhar para o nosso corpo de maneira diferente, de nos sentir mais belas. Não falo tanto de beleza física, mas da percepção que temos de nós mesmas, de um modo geral. É um processo muito gostoso de ver - explica.

O reflexo da melhora na autoestima é ampliado para a vida pessoal da cada aluna com melhora das relações pessoais e mais confiança no trabalho, por exemplo.

A história do pole dance está intimamente ligada à da dança erótica e, por isso, as praticantes ainda sofrem muito preconceito. Não é uma modalidade vista com "bons olhos".

- A gente recebe muita mensagem de homens, principalmente nas redes sociais. A atividade ainda é muito ligada à sexualidade, mas meu objetivo é mostrar que não é só isso. No começo, me preocupava, hoje, eu bloqueio e ignoro. Nós somos livres e ninguém tem o direito de opinar na nossa vida.

O caminho até a segurança foi longo. Nascida em uma cidade do interior, Aline não se encaixava no que era esperado. Quando mais nova, chegou a achar que mulheres deveriam se comportar de tal maneira para serem aceitas, reproduzindo machismos dos quais estava acostumada. Porém, com o tempo, percebeu que não era assim.

- Eu não era delicada e meiga, não conseguia me moldar ao que esperavam de mim. Foi no pole dance que decidi, definitivamente, não seguir mais esses padrões. Agora que aprendi a abrir um espacato, nunca mais faço foto de perna fechada - diz, aos risos.

LIBERDADE PARA VIVER

A maquiadora Anelise Fenalti, 32 anos, fugiu da rota tradicional de mulher que precisa ser delicada e servil. Solteira (nem por isso sozinha), sem planos para filhos (embora os deseje), viaja sozinha pelo mundo, gosta da própria companhia e investe pesado na realização pessoal e profissional. Em processos constantes de reformulação interna e externa, Anelise só faz o que a deixa confortável - do crossfit, modalidade que tem referência aos homens, aos momentos em que abre um vinho e desfruta da própria presença.

- Estou muito focada em mim, não tenho energia para investir em uma família agora. Tive relacionamentos ruins, me submeti a muitas coisas erradas, e hoje prezo pela minha paz e saúde mental. Ter um relacionamento é apenas um âmbito da minha vida, não é o alicerce, então estou muito bem resolvida nesse sentido. Se rolar, se for para acrescentar, ótimo - explica.

Foi percorrendo diversos países sozinha que a maquiadora percebeu que, literalmente, poderia ganhar o mundo. A primeira viagem foi após o fim de um relacionamento longo que havia acabado. Ela diz que precisava se sentir potente de novo.

- O fim da relação deixa a gente, muitas vezes, com a autoestima abalada. Viajei sozinha para me enfrentar, me reencontrar.

Em um hostel, na Argentina, Anelise queria se divertir e fazer novas amizades. Foi lá que se abriu para uma nova vida e percebeu o que a fazia feliz.

- Eu me dei conta que me basto, que não preciso ter alguém comigo, foi um start para me libertar.

Desde então, já viajou diversas vezes sozinha, inclusive fez um intercâmbio na Inglaterra. Estar só, segundo ela, acaba fazendo parte do seu temperamento.

- Às vezes, estou com minhas amigas ou até de rolo com alguém e sinto a necessidade de ter o meu tempo. Isso me traz centro e paz.

Há 10 anos, o trabalho como maquiadora a levou ao encontro da valorização da beleza natural das mulheres. "Perfeitamente imperfeita", como a frase da camiseta que usava quando recebeu nossa reportagem, é como ela quer que outras mulheres se sintam. Em um contexto de redes sociais, photoshop, filtros e pele perfeita, Anelise estimula a autoaceitação.

- Eu sempre tive problema de autoestima, não gostava da minha pele, do meu cabelo. Quando comecei a me libertar disso, pensei que poderia libertar outras mulheres que chegavam ao salão com ideias de seguir um padrão estético. As demandas são muito mais internas do que externas, vão além de uma camada de base. Elas passam pela falta de valorização da mulher, que quer encontrar na maquiagem uma forma de serem vistas. Quero que as mulheres se sintam bem sendo elas. Isso é liberdade!

LIBERDADE PARA SER

A noção de liberdade se articula em torno da condição social, de gênero, de raça/etnia e é inegável que há diferenças. As mulheres negras, historicamente esquecidas, colocadas à margem da sociedade, batalham mais para conquistar independência. Para Natieli Silva de Souza, 30 anos, cabeleireira e trancista, passar pelo processo de aceitação do próprio cabelo a levou a profissão que a sustenta e dá poder.

- Liberdade, para mim, é fazer o que eu me sinto bem, sem pensar na crítica. A opinião das pessoas eu guardo. Não sou obrigada. Uso a roupa que eu quiser, aceito meu corpo como é. Vivo à maneira como eu escolhi viver. Eu não aceito estar em lugares onde não me sinto bem. A gente precisa abrir espaço para todas as pessoas, respeitando suas individualidades.

São processos, por vezes doloridos. O dela começou quando resolveu tirar totalmente a química do cabelo e começou a aceitar e cuidar das madeixas crespas e volumosas. Foi assim que surgiu a ideia de cuidar dos cabelos de outras mulheres negras, que por vezes se submetiam a procedimentos de alisamento dos fios contra a própria vontade. Há um ano, abriu um salão, o único de Santa Maria que não usa produto químico no cuidado dos cabelos afro e ainda é especialista em tranças.

- Seguir um caminho que parecia impossível, fugindo do padrão da mulher dona de casa, com filhos, casada, de cabelo liso, não foi fácil. Minha vida mudou com o trabalho. Às vezes não acredito no que conquistei. É muito bom entender, principalmente das mulheres negras que são 98% das minhas clientes, que hoje elas têm uma referência, um lugar onde elas se sintam bem e possam ser quem elas são: com cabelo natural, com extensão, cabelo colorido ou neutro.

Foi como se, com a química do cabelo que desapareceu, nascesse uma nova mulher, sabedora das suas potências.

- Não me deixo levar por ninguém.

LIBERDADE PARA ESCOLHER

A diarista Dora Wouters, 45 anos, desde muito nova, prezou por fazer suas próprias escolhas. Nascida no interior de Mata, aos 11 anos teve que parar de estudar por conta da dificuldade de transporte até uma escola. Com 14 anos, decidiu que terminar os estudos era seu maior sonho, e se mudou sozinha para Santa Maria. Para conseguir se manter, começou a trabalhar como doméstica durante o dia, e estudava durante a noite. Depois de terminar o Ensino Médio, começou o pré-vestibular para poder ingressar na tão sonhada faculdade, mas, aos 21 anos, ficou grávida.

- O casamento naquela época não era uma opção, por dois motivos. Primeiro, porque a gente não tinha um relacionamento que desse para se transformar em uma história a dois. Além disso, eu também não me imaginava casando naquele momento. Fui viver a vida do jeito que podia ser - conta Dora.

Ela criou a filha, Gabriela, que hoje tem 23 anos, sozinha, mas, com exceção dos três meses de licença maternidade, nunca parou de trabalhar.

- Foi sempre eu e minha filha. Eu sempre disse para ela estudar, porque é a coisa mais importante que existe no mundo para ter uma vida menos pesada. Não acho que seja indigno um trabalho com força física, mas é mais difícil - comenta.

Dora teve um único relacionamento sério, momento em que decidiu ter o segundo filho, o Daniel, hoje com 10 anos. Cerca de três anos depois de morar junto com o companheiro, acabou se separando.

- Eu tive minha independência muito cedo, e não consigo me prender muito. Para mim é difícil ter mais alguém. Eu com meus dois filhos, consigo acomodar tudo a minha maneira, mas se já tem uma terceira pessoa, já saiu do meu controle. A vida me moldou assim, eu acho. Eu sempre digo para minha filha, seja independente, nunca dependa de ninguém para nada, nem emocionalmente e principalmente financeiramente - diz.

Com essa independência é que ela educa seus filhos e, mesmo não sendo fácil, os incentiva a nunca deixarem de ir atrás de seus sonhos. Eles aprendem não só por meio das conversas, mas também pelo exemplo. É que a Dora, mais de 20 anos depois de terminar os estudos, não deixou de seguir seu coração. Em 2018, depois de fazer pela primeira vez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ingressou no curso de Matemática na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pouco antes da pandemia, trancou a faculdade por conta de algumas dúvidas e dificuldades, mas não esconde a vontade de concluir a graduação.

- Ser independe não é fácil. Eu fui mãe, fui pai, e em meio à pandemia ainda sou professora. Mas isso me deu uma força, que hoje em dia encaro qualquer situação. O que me da mais satisfação é que minha filha hoje está com 23 anos, é uma mulher independente, estuda, já trabalha na profissão dela, então quer dizer que deu certo, certas coisas que eu abri mão e deixei, a realidade dos meus filhos está sendo diferente da minha - completa.

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